quarta-feira, 5 de maio de 2010

Candidatura Marina Silva: Um manifesto


I. Nota introdutória
Marina Silva não é a favorita na corrida presidencial. Mas ela é a única candidata portadora de um sonho de civilização brasileira que merece ser sonhado.
Ao contrário dos gerentes e tocadores de obra que lideram as pesquisas, ela é a única liderança capaz de inspirar o eleitorado, especialmente os jovens, com uma visão generosa de futuro em que o Brasil não se resigne a continuar sendo mais do mesmo – uma cópia canhestra do modelo norte-americano, na melhor das hipóteses.
Cabe a ela, acima de tudo, reintroduzir um vetor de sonho na vida pública brasileira.
Cabe ao movimento que ela representa a construção de um projeto de nação em que a valorização do conhecimento pela educação e pelo estímulo à pesquisa, aliado ao uso inteligente e à preservação do nosso patrimônio ambiental, desloquem o primado quase exclusivo do critério econômico "strictu senso" nos processos decisórios e se transformem em genuínas prioridades de governo.
Ouso que crer que a própria condição de “azarão” na corrida eleitoral pode se revelar um trunfo, na medida em que propicie a ela uma maior desenvoltura na defesa de ideias e propostas que surpreendam e redefinam a pauta da eleição. Por que não, por exemplo, enaltecer a reconhecida competência gerencial de Serra e Dilma – eles se merecem – e dizer que ambos dariam excelentes ministros, porém de um governo capaz de dar-lhes um norte e uma visão de futuro eticamente orientado? Ótimos ministros, portanto, mas do seu governo!
Pelo seu perfil, postura e situação na campanha, Marina é a única em condições de “pensar o impensável”. A única disposta a mudar o modo de fazer política no Brasil; a única habilitada a disseminar valores que inspirem a cidadania; a única que demonstra estar suficientemente comprometida com os princípios do aprimoramento humano e da sustentabilidade socio-ambiental de modo a garantir que venham a presidir de fato, em seu governo, as iniciativas e políticas do Estado brasileiro.
Nos dois textos apresentados a seguir (baseados na revisão e adaptação de artigos previamente publicados) procurei formular o esboço de uma espécie de manifesto pró-Marina, propondo não um programa articulado de diretrizes, com sugestões e medidas pontuais, mas buscando sustentar a existência e a importância da sua candidatura à luz dos valores e princípios que, a meu juízo, dão a ela absoluta legitimidade e fazem toda a diferença.

II. O lugar do sonho e o pulso da mudança
O que esperar do Brasil?
Do ponto de vista lógico, existem três formas básicas de se pensar o futuro.
A previsão lida com o provável e responde à pergunta: o que será?
A delimitação do campo do possível lida com o exequível e responde à pergunta: o que pode ser? E a expressão da vontade lida com o desejável e responde à pergunta: o que sonhamos ser?
As relações entre esses modos de conceber o futuro não são triviais.
Há duas direções de causalidade relevantes em jogo.
De um lado, é claro, está o princípio de realidade. Se o desejável não respeitar os limites do exequível, ele se torna vazio e quixotesco (quando não trágico).
Desde a sua origem no século XVIII, boa parte da missão da economia como disciplina tem sido a árdua tarefa de procurar enquandrar os vôos alheios e submeter o voluntarismo de políticos, reformadores e visionários aos rigores da consistência e da exequibilidade. A aritmética desagradável é um dos ofícios do economista; o balde de água fria, uma de suas especialidades.
Ocorre, porém, que a casualidade corre também na direção contrária: o desejo de mudança modifica o futuro. A realidade objetiva deve ser conhecida e respeitada, mas ela não é toda a realidade.
A vida das nações, não menos que a dos indivíduos, é vivida em larga medida na imaginação.
A capacidade de sonho e ação de um povo fertiliza o real, expande as fronteiras do possível e reembaralha as cartas do provável. Quando a vontade de mudança e a criação do novo estão em jogo, resignar-se ao provável e ater-se ao exequível é condenar-se ao passado e à repetição medíocre.
Se é verdade, portanto, que o sonho desligado da realidade é vazio, como enfatiza a economia, é preciso ter em mente que o contrário dessa grande verdade não deixa de ser também uma grande verdade: a realidade desprovida do poder transformador do sonho é deserta. O desejo move. No universo das relações humanas, o futuro responde à força e à ousadia do nosso querer.
Com o que sonham e se preocupam os brasileiros? Uma ampla enquete de opinião promovida em 2009 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), por meio da Campanha Brasil Ponto a Ponto, permite tomar o pulso e revelar o norte do desejo de mudança que anima a sociedade brasileira.
Diante de uma mesma pergunta – “O que precisa mudar no Brasil para a sua vida melhorar de verdade?” – cerca de 500 mil brasileiros tiveram a oportunidade de oferecer uma resposta e formular a sua visão.
Os principais resultados da pesquisa? Ei-los:
1) A educação – seguida de violência e emprego – é a principal aspiração/problema (“temas substantivos”) da nossa sociedade;
2) Valores morais (como respeito, justiça e paz) e a formação do caráter das pessoas figuram como os mais frequentes “temas transversais” perpassando as respostas e escolhas substantivas.
Duas principais mensagens podem ser depreendidas dos resultados da pesquisa. A primeira é a clara explicitação da força do desejo de mudança no Brasil. Existe uma injustificável distância entre o que efetivamente somos, de um lado, e o que podemos e desejamos ser como nação, de outro.
O pulso da mudança bate com força na imaginação dos brasileiros.
Há um Brasil potencial querendo despertar e desenvolver-se a partir das promessas e desafios do Brasil real.
A segunda mensagem da pesquisa remete à direção da mudança.
A identificação da educação – especialmente na dimensão da formação dos valores e do respeito a normas de convivência – como a principal aspiração dos brasileiros frente ao futuro, confere um conteúdo substantivo à visão de um desenvolvimento eticamente orientado, não como a escalada cega da acumulação e do consumo competitivo – parafuso espanado no vazio, mas como “a expansão da capacidade humana para levar uma vida mais livre e digna de ser vivida”, como propõe o economista indiano Amartya Sen.
O que se demanda não são soluções prontas ou medidas heróicas que melhorem a renda, as condições materiais de vida e o bem-estar mas, isto sim, os meios para a criação de capacitações e a formação de virtudes que ampliem o leque efetivo de liberdades dos cidadãos e permitam à sociedade como um todo afirmar seus valores e viver à altura do seu potencial.
Os brasileiros não só reconhecem a extensão desse hiato que os separa do que almejam como são capazes de identificar, de forma clara e precisa, a principal deficiência que nos distancia da realidade sonhada.
A decorrência prática dessa demanda pode ser resumida recordando o que dizia Eugenio Gudin, há exato meio século, quando a euforia desenvolvimentista contagiava a imaginação dos brasileiros e mais uma vez relegava – como volta a acontecer hoje – o investimento em educação e pesquisa à posição subalterna que sempre ocupou entre nós, não obstante o clamor ritual das temporadas eleitorais: “O problema do desenvolvimento econômico tem sido geralmente encarado no Brasil sob o prisma do curto prazo e do imediatismo, isto é, da execução de determinados melhoramentos materiais de resultados tangíveis em um período governamental. Se há, entretanto, problema que exija planejamento de longo prazo, com expectativa de resultados seguros mas só gradativamente evidenciáveis, este é o da formação de gente, isto é, de uma população sadia, ativa e capaz. É a qualidade da população que constitui o elemento decisivo do desenvolvimento”.
Os ventos sopram de novo a nosso favor.
Repetiremos outra vez o mesmo equívoco?
De lá para cá, o tamanho do desafio só fez crescer.
O Brasil do século XXI ainda carece de lideranças capazes de incendiar a imaginação da sociedade com o valor da educação e do conhecimento – um “JK do capital humano” (menos a inflação). Ninguém melhor que Marina Silva tem hoje condições reais de liderar um movimento ousado e efetivo em resposta a essa gritante lacuna do nosso percurso como nação.
“O erro”, diz um poeta, “repete-se sempre na ação, por isso deve-se incansavelmente repetir a verdade em palavras”.
III. Trópicos utópicos: um vislumbre do sonho brasileiro
Cada cultura encerra um sonho de felicidade. A superação da pobreza que debilita e restringe a margem de escolha de tantos brasileiros; o combate sem trégua à absoluta falta de oportunidades que tolhe o talento criador e cerceia o horizonte de um enorme contingente de crianças e jovens e a redução consistente da desigualdade por meio de políticas de capacitação e inclusão são imperativos de primeira ordem em qualquer visão de futuro digno de ser sonhado – eles representam a dimensão prática e material de um sonho compartilhado de nação.
Mas é preciso ir além. Desenvolvimento para quê? Em nome do quê? Resolver problemas não é o mesmo que afirmar vocações. O que, afinal, almejamos como nação? Que sonho de grandeza e constelação de valores poderiam nos unir em torno de um projeto de realização e afirmação brasileira no concerto das nações? Existirá uma utopia mobilizadora da alma e das energias dos brasileiros? O que o Brasil teria a dizer ao mundo se pudesse finalmente superar as mazelas do seu atraso em áreas como ensino, saúde, saneamento, transporte e segurança?
“Um país pequeno com horizontes pequenos”, afirmou o rei Leopoldo II sobre a Bélgica.
Será esta a vocação brasileira?
Ouso crer que não. Prefiro encarar o desafio lançado por Dostoievski em Os possuídos: “Se um grande povo não acreditar que a verdade somente pode ser encontrada nele mesmo; se ele não crer que ele apenas está apto e destinado a se erguer e redimir a todos por meio de sua verdade, ele prontamente se rebaixa à condição de material etnográfico, e não de um grande povo: uma nação que perde esta crença deixa de ser uma nação”.
Como atinar com as palavras do romancista russo e não se pôr imediatamente a pensar no Brasil ideal que pulsa e vibra no coração do Brasil real?
Um Brasil que mereça ser sonhado não pode ser mera fabulação da imaginação caprichosa. Ele precisa partir do que efetivamente somos; das virtudes e defeitos que se mesclam em nosso destino de nação. Ele precisa reconhecer os limites e condicionantes herdados do passado para traçar o mapa do que podemos e o norte do que sonhamos ser.
É garimpando o cascalho de nossas conquistas e reveses que chegaremos à lapidação de nossos saberes e potencialidades. O segredo da utopia (no bom sentido) reside na arte de desentranhar a luz das trevas.
Há um futuro luminoso querendo despertar das ameaças e promessas do presente.
Que país não poderia ser o nosso! Quando penso no Brasil ideal que povoa e anima os meus sonhos não nos vejo metidos a conquistadores, donos da verdade ou fabricantes de impérios. Não nos vejo trocando a alma pelo bezerro de ouro ou abrindo mão de nossa compreensão lúdica e amável da vida na luta por uma "pole position" na métrica do PIB "per capita" e do descaso por todos os valores que não se prestam a um cálculo monetário. Quanto vale a nossa biodiversidade? Quanto custa um dia de sol?
Se a civilização da máquina, da competição feroz e do tempo medido a conta-gotas tem alguma razão de ser, então ela existe para libertar os homens da servidão ao monovalor econômico, e não para enredá-los em pérpetua e sempre renovada corrida armamentista do consumo e da acumulação.
Do que nos fala a utopia de um Brasil capaz de nos fazer acreditar que podemos ser mais – muito mais! – que simples material etnográfico para diversão de antropólogos? Ela nos fala de um ideal de vida assentado na tranquilidade de ser o que se é, como no canto e violão de João Gilberto.
Ela nos fala da existência natural do que é belo e da busca da perfeição pela depuração de tudo que afasta do essencial. Ela nos fala de um outro Brasil, nem mais verdadeiro nem mais falso que o existente – apenas reconciliado consigo próprio, em paz com a sua esplendorosa natureza.
De um Brasil altivo e aberto ao mundo, enfim curado da doença infantil-colonial do progressismo macaqueador e seu avesso – o nacionalismo tatu. De um Brasil em que a democracia racial deixou de ser mito a encobrir para fazer-se forma de vida a revelar. De um Brasil que trabalha (o suficiente), mas nem por isso deixa de transpirar alegria de viver – o “doce sentimento da existência” pelo qual suspirava Rousseau – por todos os poros. De um Brasil, em suma, capaz de apurar a forma da convivência sem perder o fogo dos afetos. Uma nação que se educa e civiliza, mas preserva a chama da vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa. Uma nação que poupa, investe em seu futuro e cuida da previdência, mas nem por isso abre mão da disponibilidade tupi para a alegria e o folguedo.
Faz sentido a idéia de uma civilização brasileira?
Uma resposta afirmativa não precisa implicar qualquer tipo de arroubo xenófobo, rompante nacionalista ou furor colérico. O que ela implica é a identificação dos nossos valores e uma efetiva adesão a eles. O que ela implica é a recusa da crença de que não podemos ser originais, de que devemos nos resignar à condição de imitação modesta ou cópia empobrecida do modelo que nos é oferecido pelo “países ricos” – o chamado "Primeiro Mundo". Esse modelo, é inegável, possui grandes méritos, mas o tempo vem revelando os seus graves limites, a começar pelos danos ambientais causados e ameaça ecológica que representa. As nações desenvolvidas, como alerta o poeta e pensador mexicano Octavio Paz, “giram incansavelmente no vazio: não avançam, se repetem [...] o seu hedonismo é a outra face do seu desespero; o seu ceticismo não é uma sabedoria mas uma renúncia; o seu niilismo desemboca no suicídio e em formas degradadas de crença; o seu erotismo é uma técnica, e não uma arte ou uma paixão”.
Sem visão de futuro não há futuro.
A construção de uma civilização brasileira é tarefa da imaginação crítica e criadora – de uma antropofagia paciente, criteriosa e seletiva do que o mundo desenvolvido tem a nos oferecer: uma visão capaz do sonho, mas também do senso de realidade e da ponderação. Sob a luz austera do provável e do exequível a curto prazo, a visão de um Brasil que mereça ser sonhado pode parecer remota. Mas ela não é uma abstração vazia. A força do seu apelo anima de esperança o caminho e ilumina desde já o nosso horizonte imaginativo.
Sonhar alto – ousar o novo – é imprescindível.
O futuro será o que fizermos dele.
A consolidação de Marina Silva como liderança de expressão nacional nas eleições de 2010 representa um passo decisivo – uma ponte vital – no caminho rumo a um futuro que seja, a um só tempo, generoso no sonho e sabiamente construído na ação. A candidatura de Marina incorpora e projeta o ideal de uma civilização brasileira: uma nação redimida não perante o mundo, isso é decorrência, mas perante si mesma.
Tupi and not tupi.
Um Brasil feliz.

Eduardo Giannetti, 23-abr-2010 (por e-mail)

Nenhum comentário: