terça-feira, 3 de março de 2009

A ÍNDIA QUE A GLOBO NÃO MOSTRA

Indianos lavam roupa e tomam banho à margem do Rio Ganges enquanto um pássaro se alimenta do cadáver que boia nas águas.
Carollyne Almeida
A nova novela das 8 da Rede Globo mal começou e já tem gente se encantando pela Índia.
Aproveitando a onda, agências de viagem oferecem pacotes para todos os gostos e bolsos.
Todos querem a mesma coisa: ver de perto toda a opulência de palácios e templos, a riqueza material e espiritual, trajes esvoaçantes que dançam e colorem as ruas da Índia.
Porém, pouco disso é verdade.
O folhetim Caminho das Índias, da autora Glória Perez, ultrapassa o limite da fantasia e transmite, diariamente, uma Índia que não existe.
É claro que, antes de tudo, é bom lembrar que a novela não tem obrigação de ser documentário, e, portanto, não cabe a ela mostrar o país real, e sim o que lhe é conveniente e traduza uma beleza plástica do jeito que o público gosta.
Agora, não compre a passagem, pendure a máquina fotográfica no pescoço e não desembarque no país acreditando que encontrará somente as maravilhas exibidas na televisão.
O ator José de Abreu, que na trama interpreta o sacerdote Pandit, escreveu em seu blog (www.bloglog.globo.com/josedeabreu) sobre os dias que passou na Índia para a gravação da novela.
É uma estranha sensação de que estou vivendo numa terra que mistura deuses com excrementos”, escreveu o ator no post do dia 12 de setembro do ano passado.
O comentário de José de Abreu só confirma o chocante e-mail que anda circulando pela internet, que mostra uma Índia bem diferente do colorido, alegre e romântico cenário onde vivem Maya e Bahuan.
O e-mail traz fotos de um país miserável, cheio de lixo, pobreza e com um trânsito caótico.
Mas o mais chocante são as imagens das sagradas águas do Rio Ganges.
Apesar da poluição do rio que corta várias cidades, a tradição milenar indiana fala mais alto.
“Para os indianos, o rio tem a função de purificar, ‘lavar os pecados’ dos vivos e também dos mortos. Portanto, é prática comum cremar os corpos e jogar as cinzas no Ganges”, explica Romualdo Pessoa, professor de Geopolítica e Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Porém, nem todos possuem recursos necessários para isso e, sem dinheiro para o ritual de cremação, atiram os corpos – às vezes amarrados a pedras – no rio.
As vacas, consideradas animais sagrados, também são jogadas no Ganges quando morrem.
Na mesma água em que cadáveres boiam, os indianos lavam roupa, tomam banho e escovam os dentes. “Isso a novela não mostra”, pontua Romualdo.
Sobre o detalhe, José de Abreu também dedicou um parágrafo: “Como é possível uma pessoa escovar os dentes no Rio Ganges, usando os dedos, lixando os dentes com lixa de unha de metal. (...) Isso ao lado de alguém que lava roupa e bate mil vezes nas pedras das escadarias que levam ao Ganges, de outro que toma banho com sabão, de outro que bebe de forma sagrada suas águas fazendo oferendas ao Rio Deus, Ganga Ma, jogando flores, pós, panos, velas acesas que saem boiando em folhas... E tudo isso acontecendo a poucos metros de onde se jogam as cinzas dos corpos cremados e perto de onde se jogam os corpos que, segundo a religião hindu, não são cremados: de crianças, de mulheres grávidas e de homens santos e iluminados, que são amarrados a pedras e lançados no fundo do rio.”
O professor de Letras Pedro Júnior foi como turista à Índia antes do boom provocado pela novela de Glória Perez.
Pedro ficou chocado ao chegar ao país e ver que muito do que imaginava ser verdade não era.
“Eu imaginava um lugar parecido com o que a novela mostra hoje. Como turista, fui atrás dos palácios, dos pontos turísticos, mas fiquei indignado com a pobreza e miséria que assolam a Índia”, diz.
As ruas são mínimas, de um metro de largura, e por lá se apertam carros, gente, motos, animais e lixo.
“As ruas sempre cheias de gente de todos os tipos, às vezes literalmente atropeladas por motos e scooters que buzinam sem parar; e cheias de lixo, esgoto e bosta de vaca, cachorro e gente.
E sempre molhadas, sempre uma água escorrendo suja de alguma porta ou buraco de parede”, descreve o ator no seu blog.
Exageros
Segundo o professor Romualdo, a novela também peca por evidenciar o lado do fundamentalismo religioso, principalmente no que se refere ao sistema de castas.
“O sistema de castas não é mais oficial desde 1947 e permanece enquanto aspecto cultural.
As castas são reais, mas não tão extremadas e exageradas como mostram na novela.”
Além disso, como o próprio Diário de Bordo virtual da novela fez questão de explicitar, os chamados dalits, ou intocáveis, estão se tornando uma força política importante.
A sua principal representante é Kumari Mayawati, de 52 anos, governadora do Estado mais populoso do país, Uttar Pradesh, com cerca de 170 milhões de habitantes.
Outro exagero – esse até engraçado – são as superstições e crendices destacadas pela novela.
Segundo o jornalista Washington Araújo, que publicou o texto (Des)Caminhos das Índias no blog Cidadão do Mundo (www.cidadaodomundo.org) e que esteve em Nova Déli em dezembro de 1987, algumas cenas da novela são totalmente sem sentido.
“Um indiano abastado deixar de sair de casa se a primeira imagem que encontrar ao colocar os olhos na rua for o de uma viúva ou de algum intocável é de rolar de rir.
Desfazer maldição nupcial casando o personagem com uma bananeira, uma árvore, um animal, é rematada tolice.
Não vi nada disso na Índia e se tais costumes e práticas algum dia existiram devem estar ainda enredados na milenar noite dos tempos”, escreve o jornalista.
A Índia espiritualizada é também a mesma que mostra que a riqueza existe sim, claro, mas é para poucos.
Um exemplo do luxo e grandiosidade mostrados na novela é Golden Temple, um dos templos de Shiva mais famosos e mais frequentados.
O Golden Temple é formado por uma cúpula coberta por “apenas” 750 quilos de ouro.
José de Abreu esteve no templo (apesar de ele estar proibido para turistas) e disse que ali conseguiu entender como é possível que os indianos suportem tanta desigualdade. “Foi uma experiência maravilhosa, apesar de toda a loucura. A força do lugar é impressionante, dá para entender que a sujeira da rua é apenas um pequeno detalhe numa vida purificada pelos deuses, pela crença num mundo em outra dimensão, e tudo o que eu estava vendo é Maya, ilusão.
O mundo verdadeiro é o interior, portanto, o divino, e esse é puro, limpo, cheiroso.”

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