terça-feira, 9 de junho de 2009

CIDADANIA E SOLIDARIEDADE CRISTÃS

Portas Abertas

“Quem, pois, tiver bens do mundo, e, vendo o seu irmão necessitado, lhe cerrar as suas entranhas, como estará nele o amor de Deus? Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade.”
1 João 3:17-18

Uma série de artigos publicados recentemente no jornal O Globo, acerca do programa federal Bolsa Família, reacende o debate em torno de uma questão social polêmica, o problema assistencial.
*(1)
O programa Bolsa Família é talvez o mais bem sucedido entre os vários programas sociais criados pelo governo Lula, destinados a contornar vários problemas endêmicos como a má distribuição de renda, as deficiências do sistema educacional, o desemprego estrutural e a baixa qualificação da mão-de-obra do país.
O levantamento de dados feito pelo jornal revela a enorme abrangência alcançada pelo programa, sobretudo nos estados mais pobres localizados no norte e nordeste.
Segundo O Globo, em 2010 o programa atingirá um em cada três brasileiros.
Criado com o objetivo de permitir às famílias de baixa renda manter os filhos na escola, ao invés de introduzi-los precocemente em um mercado de trabalho vicioso e brutal para gerar sustento, o Bolsa Família tem se tornado hoje para muitas famílias uma fonte de renda essencial, da qual elas dependem integralmente.
O programa é em geral bastante elogiado, mas tem também muitos críticos, que o acusam de não estar vinculado a outras estratégias que permitam que seus beneficiários venham a romper o ciclo de pobreza.
Ainda assim, estes críticos reconhecem que determinadas famílias vivem em condições sociais e econômicas que não lhes permitem gerar renda própria, necessitando dessa forma de uma proteção econômica do estado.
O lado negro desta forma de assistencialismo no entanto, é a exploração política de que este tipo de programa é vítima e a acomodação desonesta encontrada entre alguns de seus beneficiários, que simplesmente se adaptam a esta forma de renda, ainda que tenham condições de gerar renda própria, através do seu trabalho. Isto sem falar nos casos de concessão ilícita do beneficio, um tipo de fraude que infelizmente é bastante comum em relação a todos os benefícios prestados pelo estado.
Os problemas e os vícios inerentes à prestação de assistência social por parte do estado não invalidam porém o exercício desta função.
De um ponto de vista moral e humano, enquanto persistirem os problemas estruturais responsáveis pela pobreza, é necessário que o estado continue a prestar esta assistência, como uma forma de minimizar as conseqüências desta pobreza, como condição de sobrevivência para muitas famílias.
A questão assistencial tem entretanto um lado que diz respeito não ao governo, mas à própria sociedade.
Em que medida cada cidadão é também co-responsável no exercício desta função assistencial?
As pessoas em geral estão prontas a se mobilizar para ajudarem seus semelhantes em condições atípicas, como no caso de cataclismos naturais, guerras e epidemias. Entretanto, no cotidiano, é bastante raro encontrar pessoas dispostas a mitigar o sofrimento de muitos que vivem permanentemente em uma situação de calamidade pessoal, uma vida indigna, como as chamadas populações de rua.
O cidadão comum convive com a miséria de muitos de seus semelhantes no dia-a-dia, como coisa normal, indiferente ao seu sofrimento e à condição sub-humana na qual vivem a maioria destas pessoas. Os motivos alegados para esta indiferença são vários, mas em geral resumem-se a uns poucos principais:
a) A responsabilidade pela assistência social é do governo, não da sociedade civil.
Afinal, para isto são pagos os impostos;
b) Ajudar a população de rua, crianças ou adultos, é ajudar a preservar uma situação social irregular e portanto referendar a inércia do estado;
c) Muitos dos que estão entre os moradores de rua são pessoas preguiçosas ou desonestas, que tiram proveito desta situação apesar de terem condição de gerar renda própria;
d) Ajudar a população de rua é fomentar indiretamente o consumo de álcool e drogas.

Todas estas objeções a princípio são válidas e baseiam-se em fatos comprovados. Entretanto, elas não justificam, por si só, a recusa do cidadão comum em ajudar o necessitado.
Da mesma forma que a existência comprovada de famílias efetivamente carentes justifica a manutenção dos programas assistenciais do governo; apesar dos vícios decorrentes do mau uso dos seus benefícios, também a existência comprovada de pessoas efetivamente carentes em nossas ruas justifica a prestação de assistência individual a elas, não somente por parte do estado, mas também por iniciativa de cada cidadão.
Relegar apenas ao estado a responsabilidade pela prestação desta assistência é no mínimo uma demonstração de insensatez e desconhecimento da realidade da máquina administrativa do estado.
Está historicamente demonstrado que o estado é incapaz, por si só, de exercer, de modo efetivo, todas as funções sociais que lhe são próprias, apesar dos impostos que arrecada.
A questão discutível portanto, é a forma como esta assistência deve ser prestada.
A maioria das pessoas se recusa, mais por uma questão de comodismo que de ordem prática, a se envolver diretamente com os problemas de sua comunidade, sob a alegação de que este trabalho deve ser exercido apenas por instituições civis devidamente organizadas para isto.
As atividades de assistência social prestadas por tais instituições quando seriamente administradas, são realmente efetivas. Não apenas pela sua abrangência, mas também pela eficiência com que atendem àqueles que delas necessitam.
Muitas destas instituições estão voltadas não apenas para remediar situações de carência, mas também para proporcionar meios de reverter uma situação crônica de dependência social, através da profissionalização ou de estratégias de inclusão social.
Entretanto, nem todos os casos de carência humana podem ser encaminhados aos cuidados de instituições de assistência social.
Não é possível, por exemplo, que ao deparar com uma pessoa que encontro na rua e que percebo estar literalmente morrendo de fome, eu diga simplesmente a ela para procurar uma ONG ou uma instituição qualquer para que receba alimento. Também não é possível dizer a uma pessoa que está preste a suicidar que aguarde a chegada de um psicólogo.
Além disso, mesmo as instituições assistenciais possuem limitações; seja de recursos financeiros, seja de recursos humanos, que as impossibilitam de atender todo o volume de pessoas necessitadas de uma comunidade.
Caberá sempre portanto, ao cidadão comum, uma parcela de responsabilidade no exercício da assistência social.
Os argumentos comumente alegados para a recusa em assumir esta responsabilidade, acima mencionados, não podem ser entretanto discutidos apenas de um ponto de vista político ou social, mas requerem a consideração de princípios cristãos.
Nem sempre é possível, por exemplo, saber se um indivíduo que pede auxílio é realmente carente, ou se é desonesto, ou se é simplesmente preguiçoso. Também não é sempre possível saber se o dinheiro dado como esmola a um jovem ou um adulto não vai ser usado para comprar álcool ou drogas.
A doutrina cristã entretanto afirma o livre arbítrio de cada um e a responsabilidade de cada indivíduo por seus atos perante Deus.
Por isto, ela afirma que não devemos julgar levianamente a conduta de ninguém e também que a nossa generosidade deve ser incondicional, a ponto de ser estendida até mesmo aos nossos inimigos (cf. Mateus 7:1-2).
Isso significa que se alguém explora conscientemente a boa fé alheia, ou se faz mau uso de uma ajuda que recebe, ele ou ela prestará contas a Deus por seus atos, mais cedo ou mais tarde (cf. Romanos 2:5-11).
Isto não deve portanto ser empecilho para que eu seja solidário com meu semelhante, a menos é claro, que eu o conheça e saiba com certeza que ele fará mau uso daquilo que pede.
Também o bom senso manda que é preferível oferecer ajuda em bens materiais; roupas, remédios e alimentos, do que em dinheiro.
O que faria Jesus se caminhasse hoje por nossas ruas?
A solidariedade cristã é totalmente diversa da solidariedade humanista, pois enquanto esta é exercida por uma questão de responsabilidade social apenas, de forma discriminada, normalmente alardeada publicamente e em geral usada como meio para aplacar uma consciência inquieta; aquela é exercida por amor a Cristo, de forma incondicional, discreta e generosa.
A verdadeira solidariedade cristã não discrimina aquele que recebe o benefício e tampouco espera recompensa por aquilo que faz (cf. Lucas 6:33-35).
Existem entretanto alguns cristãos que afirmam que não se deve dar esmolas, mas apenas evangelizar, pois o verdadeiro cristão não precisa pedir esmolas.
Com efeito, a palavra de Deus afirma que por meio da sua fé, o justo é sustentado pela providência divina e que ainda que venha a enfrentar situações de carência material que não possa solucionar; Deus cuidará, por sua graça e poder, para que sejam supridas todas as suas necessidades (cf. Salmos 34:19; 37:25).
Entretanto, é preciso lembrar que o não convertido vê as suas carências de uma forma totalmente diversa do cristão, pois ainda não foi espiritualmente restaurado por Deus.
O seu coração está endurecido e antes que ele possa se render à graça e ao Senhorio de Deus, ele precisa perceber naquele que o evangeliza a misericórdia desse Deus, através da provisão de suas necessidades imediatas (cf. Lucas 12:33).
Evidentemente, a igreja não tem que sustentar ou ajudar indefinidamente aqueles que batem à sua porta, e que mesmo depois de receberem cuidados e serem apresentados a Cristo, adiam indefinidamente a decisão de entregarem a Ele as suas vidas. Muito menos deve o cristão ajudar o impenitente, aquele que declaradamente se recusa a se arrepender de sua conduta e persiste intencionalmente no seu erro.
A assistência social praticada por instituições religiosas é normalmente restrita às de orientação espírita ou católica.
É lamentável constatar que, no meio evangélico, o conceito de amor ao próximo geralmente se limita à evangelização e à intercessão espiritual.
Os evangélicos certamente praticam a principal forma de demonstração de amor ao próximo, ao anunciar o reino de Deus e a urgência da busca da salvação em Cristo.
Entretanto, muitos se esquecem de que Cristo não exortou apenas a fazer discípulos em todas as nações, mas também a curar os enfermos, a libertar do jugo do mal, a alimentar o faminto e a consolar os aflitos.
O falso cristão, o cristão religioso, cumpre apenas os preceitos de sua igreja e pode até frequentar fielmente os cultos e até mesmo participar de campanhas evangelísticas. Mas ele se esquece de estender a mão para o seu semelhante, ou ignora o clamor daqueles que clamam por auxílio todos os dias, nos hospitais, nos asilos, nos presídios, nas creches e até mesmo em sua própria vizinhança.
A atividade de assistência social pode e deve ser exercida pela igreja, tanto enquanto instituição quanto individualmente, por cada um de seus membros, pois ela é a comprovação prática de obediência ao evangelho de Cristo.
Jesus ilustra, através da parábola do Bom Samaritano (cf. Lucas 10:30-37), a forma pela qual deve ser posto em prática o mandamento divino do amor ao próximo.
Por este motivo, a assistência social quando praticada pela igreja ou pelo cristão, é uma porta pela qual muitos ouvem o chamado de Deus e se convertem, exatamente pelo fato de que o não convertido percebe, através dela, que aquele que prega o amor de Deus demonstra, em sua vida, que a sua fé é autêntica e que ele pratica aquilo que prega.

*(1) – Jornal O Globo – Edição de 02 de Maio de 2009

Um comentário:

Danilo Sergio Pallar Lemos disse...

Excelente blog.
A solidariedade é expansiva desde os primórdios em muitas sociedades, porem muitas vezes traz consequências politicas, que retiram a essencia desta ação.
Acesse meu blog. www.vivendoteologia.blogspot.com